A leitura base e essencial para a elaboração deste blog foi a carta de Pero Vaz de Caminha, o
registro descritivo e de cunho informativo sobre as terras brasileiras e de seu povo. Para melhor compreender a Era Colonial, a geografia e os nativos
brasileiros, é indicada a leitura na íntegra da carta.
A Carta
Pero Vaz de
Caminha
Edição de base:
Carta a El Rei D. Manuel, Dominus :
São Paulo, 1963.
Senhor,
Posto que o Capitão-mor desta
Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do
achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não
deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor
puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer!
Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa
vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há
de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e das
singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza -- porque o não
saberei fazer -- e os pilotos devem ter este cuidado.
E portanto, Senhor, do que hei
de falar começo:
E digo quê:
A partida de Belém foi -- como
Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de março. E sábado, 14 do dito mês, entre as
8 e 9 horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grande Canária. E ali
andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas.
E domingo, 22 do dito mês, às dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas
de Cabo Verde, a saber da ilha de São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar,
piloto.
Na noite seguinte à
segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua nau, sem
haver tempo forte ou contrário para poder ser !
Fez o capitão suas diligências
para o achar, em umas e outras partes. Mas... não apareceu mais !
E assim seguimos nosso
caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que
foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha --
segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas -- os quais eram muita
quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo
outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã,
topamos aves a que chamam furabuchos.
Neste mesmo dia, a horas de
véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte,
muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra
chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte
Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!
Mandou lançar o prumo. Acharam
vinte e cinco braças. E ao sol-posto umas seis léguas da terra, lançamos
ancoras, em dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali ficamo-nos toda aquela
noite. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitura à
terra, indo os navios pequenos diante -- por dezessete, dezesseis, quinze,
catorze, doze, nove braças -- até meia légua da terra, onde todos lançamos
ancoras, em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez
horas, pouco mais ou menos.
E dali avistamos homens que andavam
pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram
primeiro.
Então lançamos fora os batéis
e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor.
E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele
rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos
dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá
estavam dezoito ou vinte.
Pardos, nus, sem coisa alguma
que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham
todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que
pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem
entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente
arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na
cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas
de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de
papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que
querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa
Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais
fala, por causa do mar.
À noite seguinte ventou tanto
sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus. E especialmente a Capitaina. E
sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos,
mandou o Capitão levantar ancoras e fazer vela. E fomos de longo da costa, com
os batéis e esquifes amarrados na popa, em direção norte, para ver se achávamos
alguma abrigada e bom pouso, onde nós ficássemos, para tomar água e lenha. Não
por nos já minguar, mas por nos prevenirmos aqui. E quando fizemos vela
estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens
que se haviam juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e mandou o Capitão aos
navios pequenos que fossem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro
para as naus, que amainassem.
E velejando nós pela costa, na
distância de dez léguas do sítio onde tínhamos levantado ferro, acharam os
ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro,
com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as naus foram-se
chegando, atrás deles. E um pouco antes de sol-pôsto amainaram também, talvez a
uma légua do recife, e ancoraram a onze braças.
E estando Afonso Lopez, nosso
piloto, em um daqueles navios pequenos, foi, por mandado do Capitão, por ser
homem vivo e destro para isso, meter-se logo no esquife a sondar o porto
dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa almadia:
mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na
praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não os aproveitou. Logo, já de
noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos,
um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus,
sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas
vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos
traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de
comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta
como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes
fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no
ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no
comer e beber.
Os cabelos deles são
corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de
boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo
da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas
de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada,
que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por
pena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira era mui
redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a
levantar.
O Capitão, quando eles vieram,
estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido,
com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de
Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele
íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram.
Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém.
Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão
em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia
ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava
para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!
Mostraram-lhes um papagaio
pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a
terra, como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes um carneiro;
não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha;
quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas
como espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e
peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer
daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho em uma
taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma
albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as
bocas e lançaram-na fora.
Viu um deles umas contas de
rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e
lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava
para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se
dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós nesse
sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as contas
e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho não havíamos de
dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas
na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as
quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.
O Capitão mandou pôr por baixo
da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não a
estragar. E deitaram um manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e
adormeceram.
Sábado pela manhã mandou o
Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e tinha seis
a sete braças de fundo. E entraram todas as naus dentro, e ancoraram em cinco
ou seis braças -- ancoradouro que é tão grande e tão formoso de dentro, e tão
seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus
foram distribuídas e ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do
Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias
fossem em terra e levassem aqueles dois homens, e os deixassem ir com seu arco
e setas, aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapuça vermelha
e um rosário de contas brancas de osso, que foram levando nos braços, e um
cascavel e uma campainha. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo
degredado, criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com
eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau
Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo perto de
duzentos homens, todos nus, com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levamos
acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os arcos. E eles os depuseram. Mas
não se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos quando saíram os que
nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem
esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais correria. E passaram um
rio que aí corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga. E
muitos outros com eles. E foram assim correndo para além do rio entre umas
moitas de palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naquilo tinha ido o
degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá.
Mas logo o tornaram a nós. E com ele vieram os outros que nós leváramos, os
quais vinham já nus e sem carapuças.
E então se começaram de chegar
muitos; e entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam. E
traziam cabaças d'água, e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchiam-nos
de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem a bordo do
batel. Mas junto a ele, lançavam-nos da mão. E nós tomávamo-los. E pediam que
lhes dessem alguma coisa.
Levava Nicolau Coelho
cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha, de
maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão. Davam-nos
daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, e de qualquer
coisa que a gente lhes queria dar.
Dali se partiram os outros,
dois mancebos, que não os vimos mais.
Dos que ali andavam, muitos --
quase a maior parte --traziam aqueles bicos de osso nos beiços.
E alguns, que andavam sem
eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que
pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam três daqueles bicos, a
saber um no meio, e os dois nos cabos.
E andavam lá outros,
quartejados de cores, a saber metade deles da sua própria cor, e metade de
tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados d'escaques.
Ali andavam entre eles três ou
quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas
costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das
cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.
Ali por então não houve mais
fala ou entendimento com eles, por a barbana deles ser tamanha que se não
entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem. E assim o fizeram e
passaram-se para além do rio. E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis,
e encheram não sei quantos barris d'água que nós levávamos. E tornamo-nos às
naus. E quando assim vínhamos, acenaram-nos que voltássemos. Voltamos, e eles
mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles, o qual levava uma
bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o
lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa alguma, antes mandaram-no com
tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe desse aquilo. E
ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da primeira
agasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo.
Esse que o agasalhou era já de
idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia
seteado como São Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; e
outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida
de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua
vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais
feições envergonhara, por não terem as suas como ela. Nenhum deles era fanado,
mas todos assim como nós.
E com isto nos tornamos, e
eles foram-se.
À tarde saiu o Capitão-mor em
seu batel com todos nós outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela
baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o Capitão o não querer,
apesar de ninguém estar nela. Apenas saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu
grande que está na baía, o qual, aquando baixamar, fica mui vazio. Com tudo
está de todas as partes cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não
ser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e todos nós, bem uma hora e meia. E
pescaram lá, andando alguns marinheiros com um chinchorro; e mataram peixe
miúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bem noite.
Ao domingo de Pascoela pela
manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a
todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito.
Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem
arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre
frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros
padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer,
foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali estava com o Capitão a
bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da
parte do Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se
o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E
pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim
tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja
obediência viemos, que veio muito a propósito, e fez muita devoção.
Enquanto assistimos à missa e
ao sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a de
ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos, sentaram. E
depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a pregação,
levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e
dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que lá
tinham -- as quais não são feitas como as que eu vi; apenas são três traves,
atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, só até
onde podiam tomar pé.
Acabada a pregação
encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta.
Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo
na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau
de uma almadia que lhes o mar levara, para o entregar a eles. E nós todos trás
dele, a distância de um tiro de pedra.
Como viram o esquife de
Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais
podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo pôr em
terra; e outros não os punham.
Andava lá um que falava muito
aos outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham
respeito ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas.
Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e
pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria
cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia. Antes,
quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu
Dias e andava no meio deles, sem implicarem nada com ele, e muito menos ainda
pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaças d'água; e acenavam aos do
esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão. E
viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais
constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir
missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho.
Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não no acharam. Mas acharam
alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito
grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e
de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E depois de termos
comido vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com
os quais ele se aportou; e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia
bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos
mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nós
podíamos saber, por irmos na nossa viagem.
E entre muitas falas que sobre
o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte, que seria muito bem. E
nisto concordaram. E logo que a resolução foi tomada, perguntou mais, se seria
bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza,
deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados.
E concordaram em que não era
necessário tomar por força homens, porque costume era dos que assim à força
levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam; e que
melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados
que aqui deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que
ninguém entende. Nem eles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer
que muito melhor estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza mandar.
E que portanto não cuidássemos
de aqui por força tomar ninguém, nem fazer escândalo; mas sim, para os de todo
amansar e apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois degredados quando daqui
partíssemos.
E assim ficou determinado por
parecer melhor a todos.
Acabado isto, disse o Capitão
que fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia bem, quejando era o rio. Mas
também para folgarmos.
Fomos todos nos batéis em
terra, armados; e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio,
para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham,
puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que os batéis
puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é
mais ancho que um jogo de mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos nossos
passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. E alguns aguardavam; e outros se
afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavam misturados. Eles
davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho, e por
qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e andaram assim
misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para
cima, onde outros estavam. E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois
homens e passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria
mais que aquela do costume. Mas logo que o Capitão chamou todos para trás,
alguns se chegaram a ele, não por o reconhecerem por Senhor, mas porque a
gente, nossa, já passava para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos
e continhas, daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal
maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas.
E então tornou-se o Capitão
para aquém do rio. E logo acudiram muitos à beira dele.
Ali veríeis galantes, pintados
de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que,
certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres,
novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa,
do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo
o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim
tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta
inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma.
Também andava lá outra mulher,
nova, com um menino ou menina, atado com um pano aos peitos, de modo que não se
lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto, não havia pano
algum.
Em seguida o Capitão foi
subindo ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali esperou por um velho
que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto o Capitão estava com ele,
na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais
coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos saber
se o havia na terra.
Trazia este velho o beiço tão
furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar. E trazia metido no
buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava por fora aquele buraco. E
o Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a
boca do Capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças
sobre isso. E então enfadou-se o Capitão, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe
pela pedra um sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa, mas para
amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para mandar com as outras coisas a
Vossa Alteza.
Andamos por aí vendo o
ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longo dele há muitas palmeiras,
não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles.
Depois tornou-se o Capitão
para baixo para a boca do rio, onde tínhamos desembarcado.
E além do rio andavam muitos
deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E
faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora
almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um
gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas
mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita.
Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto
real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo
os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes,
e foram-se para cima.
E então passou o rio o Capitão
com todos nós, e fomos pela praia, de longo, ao passo que os batéis iam rentes
à terra. E chegamos a uma grande lagoa de água doce que está perto da praia,
porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos
lugares.
E depois de passarmos o rio,
foram uns sete ou oito deles meter-se entre os marinheiros que se recolhiam aos
batéis. E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou. E levavam-lho; e
lançou-o na praia.
Bastará que até aqui, como
quer que se lhes em alguma parte amansassem, logo de uma mão para outra se
esquivavam, como pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de rijo para
não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles querem -- para os bem
amansarmos !
Ao velho com quem o Capitão
havia falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E com toda a conversa que com ele
houve, e com a carapuça que lhe deu tanto que se despediu e começou a passar o
rio, foi-se logo recatando. E não quis mais tornar do rio para aquém. Os outros
dois o Capitão teve nas naus, aos quais deu o que já ficou dito, nunca mais
aqui apareceram -- fatos de que deduzo que é gente bestial e de pouco saber, e
por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados, e muito
limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como aves, ou alimárias
montezinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas,
porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode
ser mais! E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que se
recolham; e o ar em que se criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até
agora nenhumas casas, nem coisa que se pareça com elas.
Mandou o Capitão aquele
degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. E foi; e andou lá
um bom pedaço, mas a tarde regressou, que o fizeram eles vir: e não o quiseram
lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nada do seu. Antes,
disse ele, que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que levava e fugia
com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após ele, e lhas tomaram e
tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles
senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito grandes, como as de
Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.
Segunda-feira, depois de
comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos; mas não
tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos. E estiveram um
pouco afastados de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-se conosco; e
abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns
arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa.
E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas
se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com moças e mulheres. E
trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, uns verdes, outros
amarelos, dos quais creio que o Capitão há de mandar uma amostra a Vossa Alteza.
E segundo diziam esses que lá
tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa
vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados daquelas
tinturas, outros de metades, outros de tanta feição como em pano de ras, e
todos com os beiços furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos.
Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam parecer de
castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de uns grãos
vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam na tinta
muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais
vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até por
cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas.
Trazem todos as testas, de
fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta da largura de
dois dedos.
E o Capitão mandou aquele
degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem meter-se entre
eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por ser homem alegre, com que eles folgavam.
E aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite.
Foram-se lá todos; e andaram
entre eles. E segundo depois diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação,
em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão compridas, cada
uma, como esta nau capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e
cobertas de palha, de razoável altura; e todas de um só espaço, sem repartição
alguma, tinham de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada
com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. E de baixo, para se
aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma numa
extremidade, e outra na oposta. E diziam que em cada casa se recolhiam trinta
ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de comer dos
alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na terra dá,
que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; e não
quiseram que lá ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.
Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam,
papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e
carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, espécie de
tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o
Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós
tornamo-nos às naus.
Terça-feira, depois de comer,
fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa. Estavam na praia, quando
chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos,
vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam
bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto conosco que uns nos
ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos batéis. E lutavam com os nossos, e
tomavam com prazer. E enquanto fazíamos a lenha, construíam dois carpinteiros
uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara. Muitos deles vinham
ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para verem a
ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles não
tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como
cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira
que andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco
tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.
E o Capitão mandou a dois
degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que de modo algum viessem a
dormir às naus, ainda que os mandassem embora. E assim se foram.
Enquanto andávamos nessa mata
a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e
pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos
nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito.
Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me
maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu
não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de
infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!
E cerca da noite nós volvemos
para as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que não dei
ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas. Os arcos são
pretos e compridos, e as setas compridas; e os ferros delas são canas aparadas,
conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de enviar.
Quarta-feira não fomos em
terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo
e fazer levar às naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram à praia,
muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo Sancho de
Tovar que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o
Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem, tinham voltado já de
noite, por eles não quererem que lá ficassem. E traziam papagaios verdes; e
outras aves pretas, quase como pegas, com a diferença de terem o bico branco e
rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu à nau, queriam vir com ele,
alguns; mas ele não admitiu senão dois mancebos, bem dispostos e homens de
prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração que
lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e
folgaram aquela noite. E não houve mais este dia que para escrever seja.
Quinta-feira, derradeiro de
abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água.
E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois
hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, e veio-lhe
comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no cada um em sua cadeira. E de tudo
quanto lhes deram, comeram mui bem, especialmente lacão cozido frio, e arroz.
Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos
todos no batel, e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande
de porco montês, bem revolta. E logo que a tomou meteu-a no beiço; e porque se
lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe
seu adereço da parte de trás de sorte que segurasse, e meteu-a no beiço, assim
revolta para cima; e ia tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia.
E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela. E não tornou a aparecer lá.
Andariam na praia, quando
saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E parece-me que
viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles
traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa
que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam
vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os
acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e
tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam. Acarretavam dessa
lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos batéis. E estavam
já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de
nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande, e de muita água, que ao
nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomamos água. Ali
descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo
que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se
pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos.
Ao sairmos do batel, disse o
Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava encostada a uma
árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-feira, e que nos
puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que
lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam,
acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.
Parece-me gente de tal
inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo
cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências.
E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e
os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se
farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que
os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E
imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que
Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele
nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois
tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E
prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!
Eles não lavram nem criam. Nem
há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que
esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que
aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si
deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós
tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Nesse dia, enquanto ali
andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso,
como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Se lhes a gente acenava, se
queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso, de modo tal, que se os
convidáramos a todos, todos vieram. Porém não levamos esta noite às naus senão
quatro ou cinco; a saber, o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um que já
trazia por pagem; e Aires Gomes a outro, pagem também. Os que o Capitão trazia,
era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a primeira vez quando
aqui chegamos -- o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa, e com ele um seu
irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de cama, de
colchões e lençóis, para os mais amansar.
E hoje que é sexta-feira,
primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos
desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor
arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o sítio onde
haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos
nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos e
sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão.
Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos assim viram
chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o rio, ao
longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois
tiros de besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou
mais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro
lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei
Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram
conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de
joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em
pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos,
estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E
quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim
como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que
certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até
acabada a comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses religiosos e
sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles, por o Sol ser
grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros estiveram e
ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, se conservou
ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava aqueles
que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles,
falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para
o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!
Acabada a missa, tirou o padre
a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar, em uma
cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia, tratando no
fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, que nos causou
mais devoção.
Esses que estiveram sempre à
pregação estavam assim como nós olhando para ele. E aquele que digo, chamava
alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a pregação,
trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram
ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço.
Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a
sua a todos -- um a um -- ao pescoço, atada em um fio, fazendo-lha primeiro
beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançavam-nas todas, que
seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto acabado -- era já bem uma hora
depois do meio dia -- viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo
aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu, (e um
seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e
ao outro uma camisa destoutras.
E segundo o que a mim e a
todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do
que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós
mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem
creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que
todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se
alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já então
terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles
ficam, os quais hoje também comungaram.
Entre todos estes que hoje
vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual
deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao
sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a
inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior -- com respeito ao
pudor.
Ora veja Vossa Alteza quem em
tal inocência vive se se convertera, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à
sua salvação.
Acabado isto, fomos perante
eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer.
Creio, Senhor, que, com estes
dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta noite se
saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram mais. E
cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa partida
daqui.
Esta terra, Senhor, parece-me
que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte
vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem
vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes
grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã
e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã
e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a
estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos -- terra que nos
parecia muito extensa.
Até agora não pudemos saber se
há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos.
Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de
Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de
lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!
Contudo, o melhor fruto que
dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a
principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais
do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute
bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa
Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!
E desta maneira dou aqui a
Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se a um pouco alonguei, Ela
me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez pôr assim pelo
miúdo.
E pois que, Senhor, é certo
que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso
serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que,
por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório,
meu genro -- o que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa
Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha.
O vídeo a seguir, faz uma breve retrospectiva dos ocorridos na Era Colonial Brasileira, descritos na Carta de Pero Vaz de Caminha.
(Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=IxE5TMVJYV8>)
Trechos do Atestado de achamento das terras brasileiras:
Trechos do Atestado de achamento das terras brasileiras:
“Esta terra, Senhor, me parece que da
ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de
que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte
e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes
barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito
cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e
muito formosa.”
“Andamos por aí vendo a ribeira, a qual
é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas,
em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.”
“Resgataram lá por cascavéis e por
outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito
grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano
de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza
todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele
disse.”
“Ali veríeis galantes, pintados de preto
e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo,
pareciam bem assim.”
Proposta de atividade reflexiva
- Pero Vaz de caminha sendo o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, registra suas impressões sobre a terra avistada. Baseando-se nos dias atuais, registre suas impressões do mundo de hoje. É o mesmo do período colonial? As pessoas se preocupam com o meio ambiente? O que poderíamos fazer para melhorar a situação do planeta?
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Fonte: (http://www.infoescola.com/wp-content/uploads/2009/11/pero-vaz-de-caminha.jpg)
Pero Vaz de Caminha - autor da carta informtiva sobre as terras brasileiras.
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